Grácio Freitas - A Sardinha Abespinhada

 A Sardinha Abespinhada
 
  Neste mundo das histórias há coisas que parecem inacreditáveis e impossíveis de serem realizadas, mas por vezes isso acontece. Foi o caso desta.
  Sempre que ia ao mercado do meu bairro, na zona do peixe, e porque gostava de fazê-lo, olhava deliciado e com muita atenção para todos os peixes expostos nas bancas. A uns dava mais atenção que a outros, pela sua textura prateada, por diferença de tamanho, formato, e demorava-me mais a observar os de cor avermelhada.
  Quase não olhava para os que eram em quantidades grandes, o que era o caso das sardinhas. Isto porque era a sua época, havia-as aos montes por todo lado. Sardinhas a granel como dizem os pescadores quando realmente são muitas.
  Numa das tais bancas cheias de sardinhas, na qual eu não iria perder muito tempo, vi de relance algo a remexer-se enquanto eu passava. Apercebi-me de um chamamento. Só devia ser comigo, pois não estava mais ninguém por perto. Era uma voz esquisita, aguda e esganiçada:
  - Ó senhor, o senhor, faz o favor…
  Olhei e não me apercebi logo à primeira. Depois, fixei-me na tal banca mais próxima, pois era de lá que vinha o chamamento.
  - Sim… sim… é consigo.
  Arregalei bem os olhos e estive tentado a dar uma palmada na minha própria testa para ver se acordava. Mas, não, era mesmo verdade. Uma sardinha daquelas granditas e gordas, do melhor que já tinha visto, era mesmo ela que me chamava. Mais por instinto e sem conseguir pensar, completamente transtornado, perguntei: 
  - Desculpe, é comigo?
- Sim, sim, queria pedir-lhe um favor, se não se importava de gastar um pouco do seu precioso tempo, que o meu brevemente está a chegar ao fim.
  - É claro… é claro - respondi meio atarantado. Sem perder um segundo, a sardinha grandita e gorda disse:
  - Vou direta ao assunto e é o seguinte: queria que fosse o porta-voz da minha indignação e do meu protesto. Falo por toda a comunidade das sardinhas. Até lhe posso passar uma procuração para me representar, se necessário - disse a sardinha, agora num tom de voz muito mais calmo. Pouco depois, continuou:
  - Vi a tua atitude, e a forma interessada como olhavas para as bancas, por isso, um pouco em desespero, passou-me pela cabeça que serias a pessoa ideal para defenderes a minha causa.
  Eu continuava espantado e notei que já se sentia mais à vontade comigo, pois já me tratava por tu.
  - Não me importo de ajudar, mas tem que me dizer o motivo e como, porque me parece que não vai estar viva por muito tempo.
  - É exatamente por isso que te peço, e porque é muito importante que todos fiquem a saber deste grande problema das sardinhas, e o que lhes vai na alma.
  - Tudo bem… tudo bem - disse eu.
  Cheguei-me mais perto da banca, para poder ouvir melhor, pois sentia que ela ia ficando cada vez mais fraca.
  Ela começou a relatar, embora não saiba ao certo se deva chamar relatos ou revindicações.
  Deu duas pequenas tossidelas, como fazem os humanos para aclarar a voz.
  - Vou falar por mim e por todas da minha espécie. Todo o mundo deve ficar a saber que não queremos ser o bobo da corte. Isto é uma expressão vossa quando a coisa não vos agrada.
  - A grande verdade é que não nos importa de ser as rainhas das festas populares e, até, dos restaurantes e piqueniques em que estamos presentes. Adoramos quando estamos nos fogareiros em quintais e churrasqueiras das famílias. Também não nos importamos de ser enlatadas, até mesmo quando ainda somos petingas ou mesmo feitas em paté.
  Continuou, mas já num tom de voz muito mais fraco. Na verdade, tive quase de encostar o ouvido à banca para conseguir perceber o que dizia.
  - O que te queria pedir era que intercedas por nós e, nesse sentido, divulgues que a coisa que mais irrita as sardinhas é a forma como a nossa imagem é usada atualmente, para promover eventos, exposições e concursos duvidosos.
  Olhando-me diretamente nos olhos, acrescentou:
  - Vou-te dar uma ideia daquilo que nos incomoda. Representam-nos quase com o tamanho de bacalhaus e penduram-nos de cabeça para baixo, e o que desenham em cima de nós? Casas, ruas e monumentos. Em algumas incluem calçada à portuguesa, há outras com toalhas aos quadrados, usadas em alguns restaurantes. Depois, há ainda as que são transformadas em elétricos amarelos, outras ainda em cacilheiros. Mais lentamente, continuou.
  - Mas das que eu não gosto mesmo nada é das que têm corações à moda minhota, isto sem falar das que têm escrita, como nos lenços dos namorados, e dos galos de Barcelos. Esses, então, põem-me doida.
  - Tenho ainda de te dizer alguns dos nomes ridículos dados a algumas delas com o objetivo de fazer propaganda, tais como: Sardinha na Onda, Sardinha Sardinheira, Sardinha Sou a Primeira, Sardinha Prato do Dia, Sardinha Caldo Verde, Sardinha Pezinho de Dança, Sardinha Pasta de Dentes, Sardinha Lata Ensardinhada, Sardinha Comadres, Sardinha o vendedor de Minis, Sardinha dos Namorados, etc.
  - Como vês, não é fácil para nós, que sempre fomos fieis aos vossos gostos e sempre demos o nosso melhor, vermo-nos agora atiradas para toda esta propaganda. Eu, por mim, só gostaria de terminar os meus dias numa qualquer grelha com fogo vivo, e brasa bem esperta. Por isso, peço-te mais uma vez, antes de me finar, que, dentro das tuas possibilidades, divulgues este nosso grito de descontentamento.
  E, sem um ai, tombou a cabeça, para não mais se mexer. Assim, deu cumprimento ao destino para que nasceu. Ainda um pouco baralhado, vi a mão da peixeira agarrar uma boa meia dúzia de sardinhas, para pôr num saco de plástico, onde a minha interlocutora, de há uns segundos atrás, estava incluída.

Fim

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