Grácio Freitas - Pontos de vista à moda antiga

Pontos de vista à moda antiga

As histórias são o que são, por isso, eu vou dar o meu melhor para vos contar uma, que achava que não era possível acontecer. Mas que nos pode chamar à atenção, para algumas formas de estar quanto à justiça e àquilo que reivindicámos.
  Numa conversa de café… não, neste caso, foi de um snack-bar. Estava à mesa, depois de um almoço de trabalho, e que devia ser rápido e de poucas bebidas, mas que acabou por ser bem regado.
  Já a tomar o café e o respetivo digestivo, que na altura não sabia se iria repetir.
  Iniciei uma cavaqueira com um dos clientes da mesa ao lado, que também tinha acabado de almoçar, e tal como eu estava com o copo do digestivo na mão.
  Um indivíduo que estava com ele à mesa a comer interrompeu-nos pela simples razão de dar continuidade a uma conversa anterior. Era uma história inacreditável que ele rematou assim:
  – Podem crer, o que estou a dizer é a mais pura das verdades – e, para justificar o que disse, continuou:
  – Fiquem a saber, o processo deu mesmo entrada no tribunal, e houve julgamento.
  – Peço desculpa, mas isso não faz o menor sentido, o responsável pela galinha é a senhora, e se o carro tivesse danos era ela que tinha de indemnizar o dono – disse eu.
  Ao que o sujeito se dispôs a contar tudo o que sabia. Claro que tínhamos iniciado o segundo digestivo e, por isso, a arte de bem contar ficava mais fácil. Contudo, mesmo assim, foi dizendo:
  – Só lhes posso dizer o que sei e contei a história como a recebi – disse num tom muito mais baixo do que aquele com que a tinha relatado, talvez para afirmar a verdade do que tinha contado.
  Depois disto tudo. Agora é a minha vez de eu vos relatar a história exatamente como a ouvi.
  Há uns tempos, numa tarde de primavera, já bem quentinha, embora ainda não desse para aquela coisa de fazer uma pequena sesta.
  Um senhor, já com alguma idade, saiu com o seu 2 (dois) cavalos, que ele considerava o seu carrinho. Era a altura ideal para tirar o "deux chevaux" da garagem, e ir tirar o carvão ao carburador, como dizem os aceleras.
  Rolava já a bom ritmo, sempre dentro dos limites, e cumprindo as leis do código da estrada. Estava a atravessar uma aldeia que ele bem conhecia e seguia numa velocidade muito mais baixa do que era permitido naquela rua. Como sempre com muitos cuidados, pois era assim a sua forma de conduzir. Utilizava a forma chamada de "condução defensiva".
  Como um raio, vinda ninguém sabe donde, uma galinha atravessou-se no seu caminho, que mesmo depois de uma manobra brusca e instintiva o senhor do 2 (dois) cavalos não conseguiu evitar o atropelamento da bicha, que colidiu com uma das rodas traseiras do 2 (dois) cavalos.
  Quando parou e foi ver o que se tinha passado, ainda ouviu um pequeno cacarejar, mas rapidamente se fez silêncio.
  Tudo isto não passaria de um pequeno incidente, com um desfecho trágico apenas para a galinha, não fosse a atitude da proprietária da galinha. Sendo ela a responsável pela segurança da galinha, o que se passou a seguir não fez sentido.
  A proprietária da bicha, para além de ser rica, era o que podemos chamar de uma pessoa conflituosa, a qual dificilmente aceitava as coisas que não a favoreciam.
  Ali mesmo na hora, e perante o senhor do 2 (dois) cavalos, reclamou o pagamento da galinha e de uma indemnização, ao que o senhor respondeu que a responsabilidade era dela, pois devia ter protegido a galinha.
  A tal senhora, nesse mesmo dia, perto do fim da tarde, marcou uma reunião com o seu advogado, e contra tudo o que foi aconselhada por ele, de nada quis saber, e mandou-lhe pôr uma ação, não só pelo valor da galinha, mas também por ovos que ela viria a pôr e, claro, também pelos futuros pintos que teria ao longo da sua vida.
  Tudo isto era um pouco ridículo para o advogado, mas o cliente era rei e senhor das suas atitudes, por isso, tratou de mover a ação.
  O proprietário do 2 (dois) cavalos foi intimado, pelo que contratou também ele um advogado.
  No dia do julgamento, lá estava o senhor do 2 (dois) cavalos, e a dona da galinha, que mesmo nos corredores do tribunal continuava a barafustar.
  Foram chamados para a sala de audiências, mas o advogado do senhor do 2 (dois) cavalos não respondeu à chamada de imediato. Passados uns segundos, entrou de rompante na sala e foi todo desenfreado para o seu lugar.
  O juiz reparou na atitude, mas não disse nada. O advogado da senhora emproada expôs todos os argumentos dela e acrescentou mais alguns, pois pensou que talvez assim pudesse ganhar um bom dinheiro.
  O juiz, virando-se para o advogado do senhor do 2 (dois) cavalos, disse:
  – É a sua vez de expor as suas razões, mas suspeito que não estarão muito bem estudadas, a avaliar pela sua entrada neste tribunal.
  O advogado imediatamente respondeu:
  – Pois não, Senhor Dr. Juiz, é que estive a cozer castanhas para depois semear. Daqui a uns tempos, vou ter castanheiros e muitas castanhas.
Todas as pessoas que estavam naquela sala de tribunal olharam umas para as outras e libertaram uma sonora gargalhada:
  – Ah! ah! ah!
  O juiz, também abismado com aquela intervenção do advogado, e com muita vontade de rir, pronunciou:
  – Percebi a mensagem. O seu constituinte fica ilibado de tudo. A queixosa vai ter de pagar as custas do processo.

Fim

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